quarta-feira, 9 de maio de 2012

O pardal

Monday, April 30, 2012 at 16:36

Há muito mais heroísmo numa morte lenta. E eu não sou cobarde. Quando vier, hei-de aguentá-la ao seu tempo, consciente da passagem, consciente do meu papel aqui, do meu percurso e direcção, do meu impacto nos outros, da minha natureza. Consciente, feliz, e a aprender, sempre.
O pardalito caiu do ninho. Por dentro, nenhum dos seus órgãos aguentou a queda. Havia sangue por todo o lado naquele corpinho arquejante. As dores só por si chegariam para me prostrar... mas ele continuou a lutar pela vida. Pouco se mexia, mas estremecia a cada dentada do batalhão de formigas que começara a devorá-lo vivo. Limpei-lhas, mas percebi que estava em sofrimento. Que não sobreviveria. Estávamos prestes a partir, mas não podia deixá-lo ali a ser devorado vivo... E não podia trazê-lo para as acidentadas pistas que iríamos percorrer... Não me ocorreu que ele preferisse morrer devagar e naturalmente. Quis ajudá-lo, impedir aquela tortura gratuita. Mas não sabia como matá-lo de forma rápida e indolor. Tentei afogá-lo, durante um eterno minuto. Quando sentiu a cabeça fora de água, agitou-se de novo. Segundo mergulho. Mais longo, até o meu coração rebentar. Sairam-lhe bolhas de ar pelas narinas. Aguentei mais um pouco. Quando saiu da água, abriu o biquinho... e desabei. Como é que te vou ajudar, pardalito? Dei-lhe colo, a ele e ao irmão maiorzito que também caíra, e por momentos o mundo voltou a fazer sentido. Soprei as formigas que restavam nos seus corpos e que iam começando a afastar-se, sentindo a minha presença. Mas continuava sem saber o que fazer. Os carros estavam quase todos prontos para a saída. Passou o Acácio e ofereceu-se para os matar, com uma centelha de prazer nos olhos que me pareceu estranha, desadequada. Neguei, mas acabei por achar que era a melhor forma de terminar rapidamente com o sofrimento... e disse que sim. Ele ficou com o maior e deu o meu pequeno lutador ao Marco: "Um para mim, outro para ti." Foram segundos até me entregar o corpinho inerte do pardalito maior. Já frio... como é possível? Já desabitado. Acarinhei-o e devolvi-o ao canteiro das formigas. Fui ter com o Marco, que comprimia com visível aflição a carótida do pequeno lutador. E ele continuava vivo... "Já deve estar..." disse-me o Marco, o olhar em desespero. O coração dele também já não aguentava mais. Concordei e fiquei com o pequeno nas mãos de novo. Senti de repente toda a aflição por que passara na última hora. Senti o desejo que tinha de crescer e voar. E por momentos quis dar-lhe a minha vida. Tenho a certeza de que a aproveitaria bem melhor do que eu...
Foi o segundo bicho a ensinar-me a morrer com dignidade. Tentei tranquilizá-lo, dei-lhe todo o meu carinho e amor e aninhei-o num tufo de ervas mais altas, procurando conquistar tempo às formigas, mais uns minutos de morte sossegada. Esperando que fossem suficientes. Corri, já o último carro saía o portão, fazendo de conta que me esqueceria, que a morte de um pardal não tinha qualquer importância, como dizem... Mas sentia, ainda sinto no coração, o peso daquela morte. O que aprendi com ele, poucas pessoas o conseguiriam ensinar, e raros são os que o entendem. E sei que nunca o vou esquecer. Só espero um dia vir a estar à sua altura...

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