sábado, 4 de setembro de 2010

um que saíu...

...estranhamente, depois de andar há dias a escrever por dentro sem conseguir sequer pensar em sentar-me e colocar a voz no papel, eis que no meio de um telefonema ela me surge na ponta dos dedos. Desliguei e agarrei no teclado. Saiu assim:

Agarro uma lâmina com a mão direita e começo. Delineio o músculo do antebraço, a roçar a pele… os pelos eriçam-se levemente, um suspiro e controlo a excitação do momento. Começo pela mão esquerda. Sempre comecei ali, onde parece haver uma pequena pega, um ressalto provocado pelos ossos do mindinho nas costas da mão. Cravo fundo e faço a lâmina deslizar. Separo essa parte da mão. Depois contorno a cabeça do osso do braço, escavo essa espécie de berlinde anatómico e ponho-o a rolar sobre a mesa. Claro que não há sangue, o som é clean, orgânico, osso sobre madeira, nada mais. Continuo, já mais confiante. Nem acredito que consegui fazê-lo, consegui cortar.
No braço as coisas complicam-se. As emoções já jorram de novo, o sangue aparece. Tento traçar uma linha simples, pura, mas não encontro o lugar certo e vou cravando sulco após sulco até ter um monte de tiras finas de carne e pele e vermelho e branco, tudo empapado. Desisto e tento acordar. Volto ao início.

Se calhar as coisas não resultam porque a lâmina não é real. A dor não é real. Então não se sobrepõe ao resto. Um pequeno sobressalto, um momento de silêncio e calma, mas depois volta tudo como antes.
Há uma espécie de fronteira invisível, um “imperativo moral” que mo proíbe. Na realidade, agora que penso nisso, tenho muitos desses… nada a haver com a moralidade religiosa que habitualmente se veicula nas nossas sociedades, esta é uma moral só minha, e estúpida na maioria dos casos (embora não neste). “A Sara é verdadeiramente amoral” diziam, antes. “Não é imoral, porque ela de facto não acredita que esteja a fazer nada errado, esse conceito de moral não existe dentro dela!”
Era a Maria a explicar-me aos outros. Não que alguma vez tivesse adiantado alguma coisa... Mas sinto saudades disso. De ser lida, de ser “objecto de estudo”. Foi a forma de vida mais próxima de mim que alguma vez senti. Um olhar directo, despudorado, a tentar ir fundo, a tentar perceber (ainda que o fizesse por si e não por mim, claro). Parece que me habituei a essa interacção com o Outro. Acho que ajudava.
Volto aos cortes. O peito já não aperta tanto, mas ainda não vou conseguir sair disto se não me doer qualquer coisa. Enfio a unha na carne da perna. Forço a entrada.
Descubro que a escrita torna ineficaz o tratamento. Quando escrevo, o golpe acontece sempre! Indolor, observo o dedo mindinho enfiar-se pela coxa dentro, sinto o calor tenro da carne, macia, que me suga como uma boca lânguida e entorpecida. Retiro o dedo, a ferida fecha. Fecho os olhos, volto a senti-la. Volúpia. Perigo.
Tenho que sair daqui.

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