domingo, 14 de março de 2010

Por alguém

Há uma história da minha infância que volta e meia me regressa à memória como as palavras não-ditas ou as asneiras feitas de que nos arrependemos para sempre. Até hoje, nunca tinha percebido porque é que tinha esse tipo de sentimento associado a este episódio. Foi assim:

Seria Primavera. O tempo estava quente mas não abrasador, andávamos de saias frescas e vaporosas a correr pelo largo, a jogar à macaca e ao elástico e à mamã dá licença e à barra do lenço. Foi pouco depois de o meu pai ter saído de casa, por isso devia ter ainda 8 anos.
Nesse dia havia até alguns rapazes a brincar connosco: estávamos perto da casa do Pedro e da Anita, mas as raparigas mais velhas não estavam connosco, pelo que as mais crescidas do grupo devíamos ser eu e a Elisa, logo seguidas pelo Pedro, o Serginho, a Sónia e mais um punhado de criaturas que já não sei quem seriam (com quem é que brincávamos numa escada de um prédio com elevador, a mandar as bonecas até ao 5º andar sozinhas para “irem às compras” ou “ao cinema”? Quem era a rapariga que tinha um avô com uma garagem lá no largo, à porta da qual jogávamos às cartas no chão e onde eu cheguei a pintar um “jornal de parede”? É doloroso não me lembrar das pessoas que, noutras alturas, foram importantes…).
Sei que éramos uns 10 a brincar, tudo abaixo dos 8, 9 anos. Sei que era um jogo em que estávamos todos juntos, o que facilitou a que a coisa não tivesse sido mais grave. Ou talvez nem tivesse acontecido nada se eu estivesse sozinha, porque por mim não o teria feito… daí a memória persistente. Enfim, sei que não fui a primeira a ser chamada.
Era um carro escuro, diria até que de dois lugares e com a parte de trás fechada, tipo carrinha. O homem era sorridente e bem parecido, recordo-o de fato e gravata, risco ao lado no cabelo farto, não me pareceu minimamente “perigoso”. Chamou uma de nós, provavelmente a que estava mais perto, ou talvez tenha chamado apenas, sem intenção de escolha. Alguém fez menção de se aproximar, ele dizia “Toma, tenho aqui rebuçados para vocês, anda cá buscar!” e as outras crianças começaram a dizer “não vás, é perigoso! Não se deve aceitar nada de estranhos!” Eu não percebi porquê. O homem só queria dar-nos rebuçados! …a rapariga que inicialmente se preparara para lá ir hesitou, sem recuar, e o homem continuava: “São rebuçados! Anda cá buscar!” As vozes nervosas dos outros miúdos não desistiam: “Não vás!” e eu continuava a achar aquilo tudo uma estupidez. Portanto, fui. Lembro-me de sentir medo por causa dos gritos aflitos dos outros “Não vás, Sara, não vás!”, e o alarido acabou por fazer com que uma Avó chegasse à janela e começasse aos gritos também. Para afastar o meu medo, acho que me virei para trás, para eles todos, e disse “Não tenham medo! Estamos aqui no nosso largo, somos tantos, até a Avó do Miguel já está a ver… O que é que acham que pode acontecer? Vou só buscar os rebuçados para comermos todos! O sr. não faz mal!”
E fui, e ele deu-me os rebuçados, e eu voltei para o grupo, e o carro arrancou e nunca mais ninguém o viu. Mas ninguém quis comer os rebuçados depois disso, um silêncio sepulcral entre nós, entrecortado pela voz docinha da Elisa a dizer-me “Isso não se faz! É muito perigoso! Tive tanto medo por ti!” e finalmente a D. Berta, que tinha aparecido entretanto, levou o pacote inteiro sem deixar ninguém comer porque “podiam ter droga”. Acho que aos poucos toda a gente foi para casa, obrigados pelas avós ou mães alertadas pela cena, ou assustados demais para conseguirem continuar a brincar ali.

Mais tarde a minha mãe explicou-me o que podia ter acontecido, falou-me dos pedófilos, dos traficantes de droga (sim, eu não percebia porque é que, depois de me ter supostamente “arriscado tanto”, ninguém tinha podido comer o produto da minha intrepidez!), pediu-me que tivesse cuidado e não repetisse a cena sem avaliar bem as condições. “Porque lá porque conheces o espaço onde estás e tens contigo meia dúzia de amigos da tua idade e uma avó à janela, isso não impede ninguém de te puxar para dentro de um carro e arrancar!” A minha mãe respeitava a minha capacidade de raciocínio e de escolha, sempre respeitou (pelo menos enquanto eu era pequena).

Até hoje nunca percebi porque é que volta e meia me lembro deste episódio. Pelo risco? Por ter sido o centro das atenções? Por toda a gente ter achado que eu devia ter obedecido em vez de ir até lá?... Por não ter podido, afinal, comer e partilhar os rebuçados com a criançada? … Hoje, com a associação de ideias que despoletou a memória, a coisa “bateu-me”: eu fui lá buscar os rebuçados para Todos! Não era para mim, nunca fui grande gulosa, aliás os doces que me davam no Natal costumavam durar até quase ao Natal seguinte! Mas estávamos com os miúdos mais pequenos, e eu sabia que eles iam adorar aquilo. Guloseimas não era coisa que se visse muito ali no largo. Foi por eles que fui. Mas depois ninguém quis, toda a gente hesitou, acabámos por perdê-los para o medo imposto pela autoridade do adulto que apareceu. Arrisquei e perdi para o medo, embora tenha vencido o meu, e embora tenha saído incólume disso.

Continuo a ir a sítios onde as pessoas têm medo de ir, onde a sociedade diz “não vás”. Vou lá encontrar-me com pessoas, outras pessoas como nós, mas que para os deste lado são “os outros”, o arquétipo negativo, de onde nasce todo o mal da Humanidade. E hoje sei perfeitamente que é mentira. São só pessoas…
Outras vezes, vou apenas a sítios onde as pessoas não vão porque não lhes passa pela cabeça que existam. Agarro nas ideias e levo-as mais longe, viro-as ao contrário, penso “out of the box” como dizem os ingleses. E isso dá-me um gozo tremendo.
Mas, como antes, continuo a fazê-lo por Todos. Ou por alguém que me apresenta um problema, alguém que se queixa da vida, alguém que quer algo e não sabe como consegui-lo. Continuo a fazê-lo por alguém, nunca por mim.
E é por isso que essa memória não descansa em paz. É por isso que não consigo agarrá-la e guardá-la, porque me foge entre os dedos como areia, mas depois regressa sempre como pedra direita à minha cabeça. Para que eu perceba. Para que eu perceba, mas não sei o quê.

A Vida dói. Talvez não doa a todos, espero sinceramente que não. Mas este meu buraco interior, esta cratera, não fecha nem se enche com nada, não pára de me devorar a tranquilidade, não sossega… Quer que eu me ponha no centro – é um buraco do tamanho de mim! – e de facto é isso que faz sentido, uma pessoa viver no centro de si própria… Mas eu não consigo. Não, ainda não.

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